RPG — Bertolini

Gabi Coiradas
5 min readDec 28, 2023

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– Você vai ter um enfarto. Estou me repetindo, mas é fato.

Ele me mostrou o dedo do meio. Sem dúvida concordava, mas como uma criança birrenta.

– Não é possível que você passe semanas sem relaxar um minuto. Sei lá, cara, vai pra praia, pra um resort, pro topo da porra da torre Eifell, mas pare de ser você por uns dois dias. Aposto que seu corpo vai gostar.

– Que tal não ser mais você agora e ficar sem o Chivas?

Touché. Ele sempre faz isso. Fiz uma cara blasé e ele me serviu um on the rocks.

– Olha, Bertô, entendo a sua preocupação, mas meus exames estão em dia. O que não está é o cérebro do meu filho.

– A mente dele só deseja uma coisa nessa vida, e você sabe o que é.

– Posso inventar uma realidade paralela em que ele realmente mereça reconhecimento. Vamos colocar um fundo verde no estúdio e sentar o moleque na minha cadeira. Faz favor, Bertolini, nem você acredita que ele tem alguma condição.

Abri metade da minha boca, mas fechei em seguida. Aquela conversa chegaria mais uma vez no lugar inútil. Sim, Leonel, eu sei que o Kaleb não dá. Sim, Leonel, Rúbia funcionaria muito melhor. Sim, Leonel, ela é mulher, é um risco com stakeholders. Yada Yada Yada.

– O que não tem solução, solucionado está. — Dei de ombros.

– Você terminou aqueles papéis que eu encomendei?

– Quase. Mas não falta muito, na verdade, é bem simples. E já adianto que não vão gostar nadinha da Neida no seu testamento. Sua mulher, principalmente, é batata que vai achar que parte dela foi dividida com a empregada, você conhece a peça.

As linhas de expressão do meu amigo endureceram. Ele já não tinha paciência para determinadas coisas há muito tempo. Esses joguetes familiares e de herança já estavam dando no saco dele há anos. Que bom que ouvi o que ele dizia e fiz Direito, pois acho que ninguém cuidaria dele como eu cuido.

Eu vi a ascensão desse cara. O repórter que de repente tomou conta da cidade. Um brilho que se apagou dos olhos acinzentados quando os problemas começaram a aparecer. A velhice não tira o viço só do corpo. Leonel não foi assim a vida toda.

Claro, a reserva, os olhos analíticos e as palavras calculadas sim, são intrínsecas. Mas havia mais sorrisos, mais pulsão. Agora, ele parece um vidro de sertralina. Lembro-me do nascimento dos dois filhos, o quanto ele estava contente com aquilo. Brincou com crianças, foi a parques, usou bonés. Do jeito dele, com certos limites, mas ele deu alguma coisa pra esses dois… e agora eles sentem falta. De alguma forma, uma parte do pai morreu e ninguém permitiu que eles tivessem um luto decente.

Nós mesmos nos afastamos um pouco desde que comecei a trabalhar mais horas nas coisas dele. Cismou de ir a bares sozinho, de se enfiar numa puta que pariu da Noruega uma vez por ano. Eu preferia quando viajávamos juntos para ver quantos km/h um porshe faz numa rodovia alemã. Cada um vive sua crise de meia-idade como pode, nós vivíamos clichês — exceto pela Harley Davidson, seria patético.

– Quando terminar, só traga pra eu assinar. Vou deixar no cofre do banco e deixamos tudo acertado pra abertura ser só quando esse corpo para de funcionar. Eu sou imortal, você sabe.

– “Porque um legado não desaparece com as cinzas dos ossos” — imitei-o de propósito, fazendo expressões características e exageradas.

– Um dia eu esqueço quem você é e te dou um belo de um soco na cara.

– Você mal alcança ela, coitado.

E o desgraçado riu. Eu buscava bastante trazer à tona esse Leonel filho do Eloy, não o dono da TV. Isso deixava ele estável. E se tem uma coisa que essa família precisa é de alguém minimamente estável, senão, cada internação do Kaleb é um copo, um vaso, uma convicção que vai pro caralho.

Às vezes, eu queria que essa história de sucessão, CEO e os infernos sumisse como mágica. É desgastante pra mim, pra ele, pros filhos, pros funcionários. Kaleb precisa de um tratamento que o dinheiro não compra e eu não tenho conseguido convencer o Leonel a vender. Esse garoto precisa de migalhas de amor, e até eu que não sou lá a pessoa mais carinhosa do mundo percebo isso. Não me casei justamente pra não correr o risco de deixar faltar tal artigo de luxo pra alguém — e porque é mais fácil do que explicar por aí que a genitália não me importa muito em relações. Moderno demais para um quase cinquentão. Eu sou a falha no conservadorismo do Leonel, e que só funciona porque é uma falha discreta, aquela pequeno pixel apagado numa TV de 50 polegadas, só gente muito atenta percebe, então, não tem motivo pra fazer alarde. Ele ficou parado nas certezas, eu abracei as dúvidas. Mas isso, por alguma razão, não abalou a nossa fraternidade, apesar das piadas iniciais.

– Também vou precisar de mais algumas assinaturas, é pra isso que vim hoje, na verdade. Deixar algumas documentações atualizadas, inclusive a procuração.

– Bertolini, se nada der certo, não deixe meu império morrer. Você está nessa porra de testamento, toca isso adiante.

– Eu sou advogado, não o Gil Gomes. — Não consegui conter o riso, tanto por ter provocado ele como pela referência jurássica.

– Bertolini, me substitua Aqui, Agora. — Ver o Leonel fazer uma piada, nos últimos 15 anos, era quase como presenciar o realinhamento de algum planeta, a passagem do Halley. Eu aproveitava esses momentos, pois sentia que ele ainda estava vivo e isso me dava certo alívio.

Levantei da cadeira do escritório e peguei minha pasta. Dei o último gole no Chivas — aquele era o nosso clube do whiskey, não se tomava dele sozinho, apenas em dupla.

– Se precisar de mim, desprecise. Estarei fora durante a semana que vem, resolvendo umas pendências do escritório.

– Se o Kaleb continuar assim, vou precisar pra abrir o testamento.

Cada vez que ele brincava com isso, eu tinha um arrepio mórbido. O desgraçado realmente me convencera de que era imortal.

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Written by Gabi Coiradas

Sou uma vinheta da MTV. Ledora, escritora, revisora, tradutora e professora. Artista drag king.

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